Terra é o título da participação do Brasil na Bienal de Arquitetura de Veneza 2023, uma exposição com curadoria de Gabriela de Matos e Paulo Tavares que ocupa os espaços do pavilhão brasileiro no Giardini. Dividida em duas galeiras, a mostra propõe questionar os cânones da arquitetura moderna ao mesmo tempo que busca em narrativas ancestrais invisibilizadas alternativas para um futuro de-colonizado e descarbonizado. Terra é o primeiro pavilhão brasileiro a ser reconhecido com o prêmio máximo da Bienal de Arquitetura de Veneza, o Leão de Ouro.
Num esforço para ampliar o acesso ao conteúdo exposto em Veneza, apresentamos aqui os textos e imagens da primeira galeria, chamada De-colonizando o cânone. A segunda galeria, Lugares de origem, arqueologias do futuro, pode ser vista aqui. O ArchDaily agradece à Fundação Bienal de São Paulo, que generosamente cedeu o material do pavilhão Terra para esta publicação.
De-colonizando o cânone
Brasília, a capital modernista projetada pelo urbanista Lucio Costa e pelo arquiteto Oscar Niemeyer no final da década de 1950, é em essência uma cidade colonial. Lucio Costa atribuiu o plano diretor de Brasília a “um ato deliberado de posse (...) um gesto de sentido ainda desbravador, nos moldes da tradição colonial (...) dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz”.
Brasília significava uma nova conquista, reencenação – à maneira modernista – o gesto dos colonizadores europeus brancos. Sua definição como Patrimônio Mundial pela UNESCO ainda se ampara nessa perspectiva colonial, atribuindo o valor cultural e histórico da cidade ao fato de ter sido construída ex nihilo, isto é, “a partir do nada”.
Esta sala apresenta uma contra-narrativa para o cânone. Ao contrário dos imaginários de fronteira que inspiraram o projeto e a construção de Brasília, aquele é um território indígena ancestral e quilombola. Antes da invasão colonial, a região era um local de encontro e troca entre várias nações indígenas do Brasil Central. Desde pelo menos o século 18, começou a ser povoada por africanos que buscavam refúgio e liberdade nos quilombos.
Hoje, a cerca de cinquenta quilômetros ao sul da capital, localizam-se as terras do Quilombo Mesquita, ali estabelecido há trezentos anos. O território Kalunga, o maior quilombo do país, está a 250 quilômetros ao norte de Brasília. As comunidades quilombolas habitavam todo aquele território e tiveram papel central na construção da nova capital. Reconhecido pela ONU como modelo de conservação ambiental, o Quilombo Kalunga é também uma “construção paisagística” de valor patrimonial inestimável para a humanidade, e para o planeta.
Arquivos de Brasília
Em 1957, o presidente Juscelino Kubitschek orquestrou uma missa católica no canteiro de obras de Brasília para marcar sua inauguração, que contou com a presença de diversas autoridades de estado. Inspirada na pintura Primeira missa no Brasil (c. 1860), de Victor Meirelles, a chamada “Primeira Missa em Brasília” foi realizada para reencenar a missa celebrada em 1500 pelos portugueses na Bahia, que marcou simbolicamente a posse de territórios ameríndios pelo Império Português no Brasil. Kubitschek então ordenou que a Força Aérea Brasileira trouxesse indígenas Karajá para participar da cerimônia, hoje monumentalizada com uma réplica da cruz de madeira original na entrada da cidade. Esse monumento dá significado a toda a paisagem brasiliana, rememorando o fundamento colonial da modernidade brasileira.
Re-integração de posse
É a partir da terra que questionamos o costume de pressupor que o lugar do vivido por pessoas indígenas e negras no Brasil seja o subterrâneo da história. A fixação desses sujeitos longe do chão onde a vida social realmente acontece tem sido um dispositivo caro à atualização de políticas de memórias que autorizam o subdimensionamento da presença e da agência de maiorias populacionais, reduzidas à condição de “o outro”.
Como cantado nos versos do Ilê Aiyê, em “cada pedaço de chão, cada pedra fincada” há uma marca de homens e mulheres que não podem ser mais pensados como dissociados de projetos de ocupação dos espaços que se pretendam democráticos num país como o nosso. Exemplo emblemático desse desafio é a própria capital nacional: Brasília, e por que não dizer o Distrito Federal como um todo.
“Nasceu de um gesto primário de quem assinala um lugar, ou dele toma posse.” Ao falar dos marcos de Brasília, o urbanista Lucio Costa associou o traço original de sua obra ao sinal da cruz. A nova capital representaria a concretização do desejo antigo de ter no centro do território nacional um símbolo da pujança de seus melhores homens, dispostos a preencher o vazio e suplantar a rudeza da nova terra.
Essas expressões de um duradouro repertório linguístico-cultural da dominação eram fortes sintomas de que, nos anos 1950 e 1960, as pretensões modernistas de políticos, empresários, arquitetos e urbanistas – porta-vozes da memória hegemônica dessa empreitada – anunciavam a atualização de projetos excludentes de Brasil. De maneira semelhante ao ocorrido em outros momentos, Brasília e o Distrito Federal não foram sonhos sonhados para caber todo mundo.
Em tempos de união e reconstrução, há de se ter olhos para ver o óbvio: as lutas de populações negras e povos indígenas pelo direito à terra, no campo e na cidade, existem em profusão como inspiração para melhores práticas para a arquitetura mundial.
As fotografias selecionadas no acervo do Arquivo Público do Distrito Federal são um convite para essa inflexão.
Ana Flávia Magalhães Pinto (em colaboração com Mara Karina Sousa Silva).
Juliana Vicente
Habitando o trânsito entre documentário e ficção, fato e poesia, a obra de Juliana Vicente explora questões raciais na sociedade brasileira, mais especificamente em contextos de ascensão econômica da população negra e seus efeitos socioemocionais. Para Terra, ela apresenta um vídeo comissionado que reflete sobre questões de terra e linguagem para repensar o território de Brasília. Habitando entre o passado e o presente, o filme nos lança no turbilhão da política contemporânea no Brasil, apontando para a “retomada” da capital modernista pelos movimentos e representantes negros e indígenas.
Mapa etno-histórico do Brasil e regiões adjacentes
Originalmente comissionado pelo Smithsonian Institution dos Estados Unidos em 1942, este mapa foi desenhado pelo etnólogo alemão naturalizado brasileiro Curt Unckel (1883-1945), influente pesquisador e ferrenho advogado dos povos indígenas à sua época. Utilizando-se de uma extensa paleta de cores, Nimuendajú – como foi batizado pelos povos Guarani com quem conviveu – territorializa quarenta famílias linguísticas indígenas, mostrando um arco-íris da diversidade sociocultural que habita as terras que hoje chamamos de Brasil. Reconhecido pela UNESCO como patrimônio da humanidade, este mapa continua sendo utilizado por organizações indígenas como evidência da posse ancestral de seus territórios.
Video da exposição
Acompanhe a cobertura completa do ArchDaily para a Bienal de Arquitetura de Veneza 2023: O Laboratório do Futuro.